segunda-feira, 30 de março de 2009

RETRÔ GLAM

“No novo tempo, apesar dos castigos/ Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos/ Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer/ No novo tempo, apesar dos perigos/ Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta/ Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver[...]/ No novo tempo, apesar dos castigos/ Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas/ Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer/ No novo tempo, apesar dos perigos/ A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça” (Ivan Lins) - Imagem: Getty Images




NOVOS VELHOS TEMPOS

Por Veruska Queiroz


Nas vitrines das maiores e mais badaladas grifes do país estão sendo lançadas as coleções Outono-Inverno/2009. Pode ser com um certo assombro que pessoas que tenham seus trinta e poucos anos ou mais vejam um revival dos anos 80 (pois é... mais uma vez) em modelos onde o exagero típico da década é a palavra da vez: ombros estruturados - o must have da estação - (que lembram as famigeradas ombreiras que todas nós juramos nunca mais usar), as calças cenoura ou carrot pants (nossas antigas baggy), coletes, jaquetas, muito preto em produções inteiras, couro, vinil, tule, rendas, babados, godês e tachas lembrando o mote clássico da época – o bom e velho rock 'n roll -, acessórios máxi (muito dourado, pérolas, pingentes em formato de cruz - meninas, lembram da Madonna nessa época?) e em grande quantidade, meia calça fina (normal, desenhada, rendada, arrastão), muitas sobreposições, cintões, paletós (os antigos blazers) sobre vestidos tubinhos (sim, eles voltaram); botas, muitas botas, com canos em tamanhos variados, maquiagem com olhos bem marcados, cabelos curtos ou, no máximo na altura dos ombros, etc. Enfim, depois do Fashion Rio e da SPFW e depois de assistir os lançamentos Outono-Inverno de algumas grifes fiquei questionando essa volta maciça e generalizada ao passado. Algumas perguntas persistem: será saudosismo mal disfarçado em expressões elegantes como retrô ou vintage? Será falta de inspiração? Ou falta de criatividade? Ou será mesmo o que parece ser a irrefreável tendência dos novos (novos?) tempos, ou seja, a retomada do velho para fazer o novo, a reciclagem e a revitalização do antigo?

Meus questionamentos que começaram pelo deleite das novas coleções Outono-Inverno/2009 se alongaram. Comecei a pensar sobre essas questões do novo-velho/velho-novo, reciclagens, remodelagem dos conceitos e transformações das formas de se ver o mundo sob uma ou outra perspectiva de forma mais expressiva. Penso que o que está acontecendo com o mundo da moda e todo o burburinho que ela provoca, considerado por alguns, talvez por não entenderem de fato o que seja a moda, como futilidade, não seja diferente do que esteja acontecendo com o mundo e com a humanidade nos últimos tempos de uma maneira geral. Estamos todos começando a entender que, para gerar um novo modelo e padrão de mais qualidade de vida é necessário uma postura de maior consciência sobre aquilo que consideramos ser a ordem social e econômica, uma postura de atitudes que visem uma melhor utilização dos recursos disponíveis, de novas formas de consumo e, a partir daí, da construção de novos paradigmas que consigam não somente transformar o caos sócio-econômico-cultural no qual estamos nos consumindo, mas, principalmente, conectar mais os povos entre si, ligados por um sentimento de justiça e comprometimento capaz de melhorar os relacionamentos humanos, desenvolvendo a tolerância, agindo com maior sabedoria e generosidade para encontrar soluções e mudar o terrível cenário mundial atual.

Sei que o assunto pode parecer piegas e soa como demagogia barata e cansativa, mas nesse momento não há escolha: que sejamos piegas, que sejamos cansativos, que sejamos chamados demagogos, idealistas, sonhadores, eco-ativistas, mas que não percamos o bonde da história, nem o fio da meada, que não fiquemos em cima do muro ou vendo a banda passar. Esses são outros termos já bem batidos e que viraram lugar comum (tal como a moda já há algum tempo), mas, nesse momento, o planeta, os nossos recursos e as relações humanas estão exatamente pedindo, penso eu, esse lugar comum, essa volta ao passado, onde a vida em si, suas diversas nuances e os valores pessoais eram mais valorizados e verdadeiros: as pessoas possuiam reconhecimento e status por serem e não por terem. A palavra de um homem era dada num fio de bigode (ok, nessa fui um pouquinho longe), os valores éticos eram ovacionados, as pessoas conversavam mais, observavam mais, compartilhavam mais, conviviam mais. O consumo era apenas a medida do bem estar pessoal e da família e não moeda de troca da vida vazia e sem sentido de quem precisa consumir e possuir para se sentir alguém de valor. Um modelo de carro, de televisão ou de máquina de escrever (sim, porque "nessa época sua avó nem pensava em conhecer um computador") eram considerados realmente bens duráveis, não eram peças descartáveis para sustentar a engrenagem da máquina do consumo fanático e desenfreado que acaba por não preencher o que se esperava e não desembocar em lugar algum, já que se perdeu há muito o verdadeiro objetivo e por aí vai... Não faço aqui nenhuma apologia a nenhum tipo de retrocesso tecnológico, social, científico ou cultural. A questão não comporta definitivamente essa visão limitadíssima e reducionista. Acredito que o que está se fazendo imperioso é uma nova postura, uma inovadora forma de encarar e lidar com esse novo mundo que estamos criando.

Não é a toa que a moda está, há alguns anos em constante movimento retrô. Também não é a toa que a indústria fonográfica mantém há algum tempo a fórmula mágica de se relançar antigos sucessos em coletâneas e perfis para reviver as décadas passadas. Com a indústria televisiva também não é diferente: remakes estão nas telas. Se não houvesse um forte desejo interno das pessoas em resgatar algumas nuances do passado, mesmo com a marcha da evolução, certamente, essa visível e constante retomada não estaria acontecendo. Penso que, assim como uma criança ou um adolescente que estejam com problemas e não estejam encontrando as soluções adequadas, tendem a "pedir socorro" de uma maneira não muito convencional; as pessoas estejam fazendo o mesmo em relação ao caos que se instalou em todos os cantos do mundo, em todos os segmentos da vida.

O que estaria faltando para a humanidade começar a repensar os paradigmas atuais sobre a produção e utilização dos recursos de uma forma mais sustentável, onde a qualidade de vida e os seres humanos sejam a prioridade e o motores do progresso? Desculpem-me, mas as perguntas, nesse momento, pulam da minha boca com vida própria... Porque precisamos reformar nossos guarda-roupas a cada nova coleção? Ou trocar todos os móveis e o carro a cada um ou dois anos e o celular a cada seis meses? O que estaria por trás desse consumo, de certa forma burro, frenético e pouco funcional, já que nada parece feito para durar, para ser apreciado e curtido realmente? O que se estaria precisando preencher? O que se estaria precisando camuflar ou tamponar? Do que se estaria fugindo? Para que algumas pessoas estão realmente vivendo? Com qual objetivo? Onde querem chegar? Será que apenas na medíocre e pobre confirmação e auto afirmação de algum tipo de status e poder? Será que algumas pessoas se contentam em ser somente isso - um amontoado de carne que precisa "Ter" para conseguir "Ser", porque, de qualquer outra forma não seriam muita coisa? Isso sem falar das questões mais importantes e emergenciais desse mundo de tsunamis, furacões, enchentes, crises, violência, aquecimento, poluição, etc... E se a água acabar? Vamos beber as roupas, os sapatos e bolsas, os celulares e os móveis novos? E se uma nova guerra mundial acontecer? Vamos nos esconder dentro dos nossos carros importados? E se o aquecimento global não for contido de alguma forma? Poderemos acabar sucumbindo sob nosso lixo, envenenados pela poluição do ar e sem alimentos suficientes para todos. Voltaremos aos tempos bárbaros? (Desconfio que algumas pessoas já voltaram - e lembrei-me agora do livro do Saramago "Ensaio sobre a cegueira" (1995) que F.Meirelles brilhantemente transformou em filme em 2008 e qualquer possível semelhança com um futuro, infelizmente não muito distante se não mudarmos imediamente o curso dos acontecimentos, mesmo que mínima, terá sido mera coincidência, ou não). Será que ainda iremos pensar em querer o último lançamento tecnológico, imobiliário ou automobilístico ou ainda algumas peças lindas da nova coleção da Chanel, D&G, Gucci ou Louis Vuitton?

E, para quem possa, até com certa razão se levarmos em consideração algumas "razões", torcer o nariz para esse texto, espero sinceramente que, até que coisas mais sérias ou trágicas aconteçam Marte, algum novo planeta ou o País das Maravilhas possam ser amplamente habitáveis, lindos e felizes... E "o Plunct Plact Zum pode partir sem problema algum" (R.Seixas, 1983).

segunda-feira, 23 de março de 2009

ATÉ QUANDO?...

“É tempo de infância/ Tempo de subir/ e descer: crianças/ Deixe-nas ser/ Um Novo Tempo precisa nascer/ Deixem que sejam crianças!/ Deixem-nas viver!” (Célia de Lima) - Imagem: Flickr




PAIS SEM RUMOS, CRIANÇAS FERIDAS

Por Veruska Queiroz


“É uma raça de todas as raças. É uma nação que ocupa o mundo inteiro. Uma tribo de milhões. Tem uma particularidade física em comum - são pequenos - mas fora isso são
diversificados, sem feições características. Até uma certa idade, falam a mesma língua indecifrável, depois começam a usar idiomas diferentes[...] Não importa em que condições tenham nascido ou que distância os separe, todos fazem a árvore e o homem no
mesmo estilo. Talvez esse exotismo explique a maneira paradoxal com que eles são tratados. Muitos são rejeitados, sofrem discriminações em alguns lugares e até campanhas de extermínio. Para muitos, a única maneira certa de escaparem desse destino é abandonarem sua tribo e aderirem ao inimigo, se transformando em nós, como camuflagem. Mas isso só acontece com o tempo e, até que aconteça, a vida é um risco.”
(Luis F. Veríssimo – O traço e o risco, 1997)

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Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão. (C.Federal/1988)

Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido
na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais. (ECA/1990)
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É com grande indignação e pavor que todos nós, quase diariamente, estamos tendo que conviver com o horror da violência contra nossas crianças e adolescentes. Assunto recorrente, eu sei, mas "é necessário que façamos alguma coisa mais, antes que elas cresçam" (Affonso R. de Sant'anna, 2003) - que falemos mais, que nos indignemos mais, que tomemos mais consciência, que denunciemos sem medo e que cobremos mais atitudes das autoridades no sentido de fazer valer a lei e aplicar com severidade as penalidades aos agressores. Entre os casos mais recentes, estão o caso da menina Isabella (com rememoração dos fatos e entrevista da mãe da menina exibidos ontem no Fantástico/Rede Globo), o pavoroso caso Josef Fritzl na Áutria, passando pelo caso Sílvia Calabresi e, dentre muitos outros, na semana passada, o caso da garota de programa que agredia um bebê de apenas 1 ano e 2 meses simplesmente porque ela “queria dormir e não suportava o choro da criança”. E isso sem falar das milhões de crianças que não são notícias nos jornais, mas que, diariamente sofrem agressões (sejam elas físicas ou psicológicas, explícitas ou veladas), abusos e mutilações. Recebi um grande número de e-mails de pessoas procurando uma resposta, através de suas indignações e revolta, para a crueldade que parece ter tomado conta de forma devastadora da humanidade nos tempos atuais. Há os que irão dizer que os tempos que aí estão, ou seja, essas formas de violência, sempre aconteceram, e que, talvez o que tem contribuído para que hoje elas sejam mais visíveis seja um maior desenvolvimento da consciência social em torno do tema da proteção à infância e à adolescência e também uma crescente mobilização em torno dos direitos humanos nos últimos 15, 20 anos. Sem dúvida esses fatores são bastante relevantes. Penso que eles devem ser sim, considerados face à contemporaneidade, mas meu receio é da ordem da subjetividade: receio que façamos dessas referências um viés para nos “acostumarmos” com a máscara cruel da violência que está nos tomando de sobressalto, embora ainda muito longe para muitos de nós (até quando?) e deixando-nos indignados, sem respostas e desamparados em nós mesmos.

As perguntas que não querem calar: O que está acontecendo? Porque agredir, espancar, aprisionar, torturar, queimar, atirar pela janela quem sequer tem condições para se defender? Porque tanta crueldade? O que explicaria tanta violência? O que estaria verdadeiramente por trás desses atos? O assunto é extenso e poderíamos nos enveredar pelo caminho de tentarmos entender a violência como um todo, como reflexo e consequência da modernidade, enraizada no modelo vigente das ideologias socio-culturais, mas, por uma questão de domínio contextual e incômodo interno, meu e de muitas pessoas que me escreveram, vou tentar me ater aqui apenas (apenas?) à violência doméstica praticada contra nossas indefesas crianças e adolescentes.

Numa perspectiva psicanalítica da violência, faz-se necessário aqui, um breve passeio pelo pensamento de Freud sobre o ódio para, a partir de então, tentarmos alinhavar e entender um pouco o mecanismo interno, que nem por isso é justificável, ressalto de antemão, do horror da violência.

Para Freud, a primeira relação de objeto (quando o sujeito é ainda um bebezinho) se caracteriza não pelo amor, mas pelo ódio. Ódio de qualquer objeto que se oponha à satisfação que o equilíbrio inicial do aparelho psiquíco proporcionava e que invada a consistência desse equilíbrio. No entanto, mesmo que pareça paradoxal, esse equilíbrio apresenta uma falha, um buraco, provenientes da sensação de falta que a necessidade de sobrevivência impõe. Assim, o ódio é uma constatação da estrutura humana: à falta respondemos com ódio. Em “As Pulsões e seus Destinos” (Freud, 1996[1915], vol. XIV), Freud faz uma correlação clara entre o sentimento de ódio e a sensação de desprazer: “O ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor. Provem do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo externo com seu extravasamento de estímulos. Enquanto expressão da reação do desprazer evocado por objetos, sempre permanece numa relação íntima com as pulsões autopreservativas."

Em suma, o ódio tem a ver, a princípio, com sentimentos de insatisfação, com o desconforto, com o incômodo, com o desprazer e não com a agressividade ou com a destrutividade. Para Freud, o ódio e o amor são forças vitais, inatas, primárias e constituintes da subjetividade do sujeito, porém, possuem fontes diferentes e somente depois de estabelecida a organização genital é que se tornarão opostos. Freud ainda dirá: “O ódio que se mescla ao amor provem, em parte, das fases preliminares do amar não inteiramente superadas”. Nas relações com o mundo externo e com os objetos, quando os mesmos forem fontes de sensações desagradáveis, o ego ansiará por se distanciar deles. O sentimento de repúdio se instala e o ódio que emerge, como excessivo pulsional, pode ficar sem lugar de inscrição, ou seja, pode não encontrar representação. Essas relações com o mundo externo (com o outro, com os objetos) que estão na base da constituição do sujeito, podem então, se transformar num confronto destrutivo. Neste caso, o ódio (ou o desprazer originário) aparece sem o anteparo que permite a organização do sujeito e pode então se transformar em violência.

A violência, diferentemente do ódio que tem um caminho e um fim certos visando um objeto próprio, aparece como impulso desordenado, sem lugar e sem nome, como excesso pulsional. Esta violência é consequência direta das tentativas frustradas do sujeito em ser acolhido, o que permitiria um lugar de inscrição para as pulsões. Quando não há esse lugar e não há nenhum contraponto (autoridade, Lei, leis, presença amorosa ou impeditiva) que permita o sujeito nascer em sua subjetividade, o ódio prolifera com força total provinda da sensação de não ter lugar algum, de não ser reconhecido e se transforma em violência. Em suma, a violência pode ser vista como um transbordamento do ódio quando este não encontra amparo, suporte e direção para sua força.

Em resumo, entendendo a violência como transbordamento do ódio e impulso desordenado fruto de tentativas frustradas do sujeito, na mais tenra idade, de ser acolhido e reconhecido, podemos pensar também em desamparo. Aqui, desamparo mais no sentido psicológico, embora o desamparo físico também possa acontecer, na figura da negligência. Esse sujeito/bebê cresce, mas as marcas desse passado são indeléveis. O sujeito se torna um adulto com essa inscrição permanente no psiquismo. É claro que, conhecer o mecanismo psíquico no qual esse sujeito está envolvido desde, praticamente seu nascimento, não justifica nenhum ato de violência praticado, posteriormente, em sua vida adulta, no caso aqui, contra crianças e adolescentes e nossos corações tem todo o direito de se indignarem e se revoltarem com esses adultos, com esses pais sem rumo, mas, pelo menos, aponta para algumas possíveis respostas e direções. Voltando ao desamparo, ele é, no adulto, corolário do próprio desamparo da criança e vice-versa e os crimes domésticos colocam em evidência, principalmente esse desamparo infantil, que é, em última instância o desamparo escancarado desse adulto perdido, sem limites, incapaz de educar, incapaz de oferecer limites sadios, incapaz de distinguir autoridade e violência, “pulso firme” e coerção física ou psicológica, incapaz de amar.

Pais sem rumo, crianças feridas. Feridas fisicamente, psicologicamente, moralmente, mas, principalmente, feridas no amor de um outro para si e, por consequência, no amor a si mesmas, feridas nas identificações sadias de afeto, segurança, proteção e amparo. Feridas nos direitos básicos à vida e à dignidade.
Outra pergunta que não quer calar: Até quando?

segunda-feira, 16 de março de 2009

O PIOR MAL

“É sempre com as melhores intenções que se faz o pior” (O.Wilde) - Imagem: Google Imagens




A AMARGA AVERSÃO A SI MESMO

Por Veruska Queiroz

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“A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas [...] a palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesmo, e este é seu suplício”. (P.Ovídio Nasão)
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Você já deve ter ouvido falar de pessoas “seca pimenteiras”, não? Pessoas que, literalmente, secam as flores para as quais olham. Você já deve ter conhecido alguém que sempre está desejando possuir o que é do outro ou ser o outro ou, numa perspectiva mais complexa, desejando que o outro não tenha ou não seja. E, é claro, você sabe como essas pessoas costumam ser chamadas.

Mas, afinal, o que seria esse sentimento de querer o que é do outro ou querer que o outro não tenha? Vamos, então, começar definindo-o. Segundo o Dicionário Aurélio da Lingua Portuguesa, inveja significa, “desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. Desejo violento de possuir o bem alheio”. Em outros termos, sentir inveja está associado ao desejo, algumas vezes inconsciente, de querer para si o que é do outro ou não querer que o outro possua ou seja aquilo que lhe desperta desejo. Etimologicamente, a palavra inveja vem do latim “invidia” que provém do verbo “invideo” – olhar maldosamente, olhar atravessado ou com despeito, lançar um olhar mau (daí a expressão popular “mau-olhado”).

O que será que move pessoas que se sentem assim em relação aos outros? Podemos começar a elucidar a questão entendendo a inveja, em sua complexa dinâmica como uma patologia, uma doença. Nesse contexto, de acordo com a teoria e a clínica psiquiátrica, recentemente, alguns estudiosos tem defendido, inclusive, a posição de colocá-la em evidência no DSM.IV (1994) - (DSM.IV TR, 2002), afirmando que ela seria uma das características diagnósticas do Transtorno de Personalidade Anti-Social. A pessoa então, estaria doente de sua (in)capacidade na inadequação de sua própria imagem e de seus desejos, que só encontram voz na comparação com o outro, na tentativa sempre frustrada de encontrar algum reconhecimento e valor, embora o comportamento externo possa "dar a impressão" de alguém muito bem adaptado, sensato e equilibrado. Muitas vezes, essas pessoas precisam lançar mão da manipulação, da vitimização e do engodo ou ainda da violação dos direitos do outro, da destruição dos bens e de alguma forma de propriedade do outro, seja de maneira concreta ou até subjetiva, do desrespeito aos desejos e sentimentos alheios, usando como subterfúgio a falsidade e o fingimento, a fim de suprirem algo que lhes faltam e de obterem vantagens pessoais, financeiras, profissionais, sociais, etc.

Tomarei aqui em meu auxílio, uma conceituação de São Tomás de Aquino (2001), que fala da inveja “como uma tristeza, como um sentimento de infelicidade diante da felicidade alheia, ou da felicidade diante da infelicidade alheia”. O invejoso não somente e necessariamente quer o que o outro tem, não somente e necessariamente quer destruir o outro, embora possa fazê-lo através de críticas, depreciações, intrigas, maledicências ou mesmo concretamente. O que o invejoso realmente quer é que o outro não tenha. Gosto muito desta aproximação entre a inveja e a tristeza feita por São Tomás de Aquino, pois penso que a inveja seja da ordem da impotência, do sentimento de insuficiência e de inferioridade. Em seus recônditos mais íntimos, mesmo de forma inconsciente, o sujeito se sabe e se sente inferior e incapaz.

Numa perspectiva psicanalítica, a inveja se origina da constatação de uma falta no sujeito, por comparação com um outro, possuidor do objeto ou da característica desejada. Ela inaugura um movimento para diante, tanto no sentido de tentar obter o que falta quanto no de destruir o que pertence ao outro de modo a eliminar, pelo menos, a dor da comparação e as diferenças. A comparação é o mecanismo responsável pelos ressentimentos dos invejosos. Maria Rita Kehl (2004), em seu livro “Ressentimento”, faz uma articulação muito interessante entre a inveja e esse, concluindo que o processo da inveja no sujeito desemboca sempre no ressentimento. Nesse contexto, esse mecanismo do ressentimento é, muitas vezes, bem sutil e encoberto, porque aquele que se sente inferior aos outros (pela comparação) e incapaz, na maioria das vezes, sente uma profunda aversão a si mesmo, mas precisa se esconder e esconder seus sentimentos ressentidos. Na tentativa de camuflar desesperadamente sua inferioridade e compensar o extremo mal estar que esse sentimento provoca, a saída passa a ser tentar obter a qualquer custo o objeto desejado/odiado. A partir daí surge também o desejo de destruí-lo, pois ele denuncia a incapacidade daquele que inveja. É uma maneira de nivelar por baixo: se não se pode ter ou ser, o outro também não terá e não será, então parte-se para “destruir” o que esse outro tem ou é, porque ele (o outro) não pode ter o que o invejoso não tem e não possui capacidade para ter e não pode ser o que o invejoso não é e não possui capacidade para ser. A inveja, portanto, será SEMPRE da ordem de um ataque ao outro - de forma direta ou mais comumente, de forma disfarçada e dissimulada - pois trata-se de fazer qualquer coisa para que o outro não tenha ou não seja - já que há a constatação de uma falta e da incapacidade de ter ou ser - e, não obstante, de regozijar-se com a infelicidade desse outro.

Nesse contexto, se o viés psicanalítico suscita algumas considerações, como vimos, a filosofia também nos deixa suas contribuições. Spinoza (2007), por exemplo, definia a “inveja como sendo a tristeza que se torna ódio e o ódio nunca pode ser bom”. Kant (2004) qualifica a inveja como “um dos vícios da misantropia, diretamente oposto à filantropia”. Já Schopenhauer (1980) considerava ser “natural e mesmo inevitável que o homem, na contemplação do prazer e da propriedade alheios, sinta amargamente sua própria carência; apenas, isto não deveria erguer seu ódio contra o felizardo, mas precisamente nisto é que consiste a inveja”. No vislumbrar de Francis Bacon (2007), "a inveja é a paixão encoberta e dolorosa para quem a sente em busca de algo que nunca chegará, assistindo ao progresso alheio corroendo-se por dentro". E, para finalizar esse apanhado de considerações filosóficas sobre a inveja, temos Diderot (2000), escrevendo que “a inteligência, a felicidade e o talento são imperdoáveis", numa clara alusão à negativa do invejoso de aceitar as qualidades dos outros e, conseqüentemente, da sua necessidade de destruir aquilo que não é capaz de conquistar, ter ou ser.

O tema da inveja é recorrente e encontra corolário por toda parte, sendo que, o maior deles incide sobre o próprio invejoso, pois sua inveja, desde o princípio dos tempos, se por um lado, pode encontrar possibilidades de tumultuar temporariamente a vida das pessoas invejadas, esse tumulto acaba disperso pela figura insignificante, doente, inferior e desprezível que o próprio invejoso desenha de si mesmo. Por outro lado, de modo mais incisivo, perturbador e permanente (e aí está o bate volta de seus atos e seu pior castigo), não o transforma na pessoa-alvo de sua inveja com tudo o que se invejou e não o transforma numa pessoa de auto-estima elevada, nem autoconfiante, nem bonito, nem inteligente, nem elegante, nem sofisticado, nem de humor refinado, nem rico, nem amado, etc e muito menos retira de si a amarga aversão a si mesmo, nem a inferioridade de seu ser, seus maiores suplício e prisão, mesmo que ele não tenha consciência disso.

Trago a mensagem de outro pensador que, se não dá uma solução para a inveja, pelos menos aponta uma forma de manejar com ela em nosso proveito. A citação é do escritor italiano Giovanni Papini (1986): "A inveja é a sombra obrigatória do gênio e da glória, e os invejosos não passam, de forma odiosa, de admiradores rebeldes e testemunhas involuntárias. Posso mesmo estar-lhes, com frequência, gratos pelo fato de o veneno da inveja ser, para os indolentes, um vinho generoso que confere novo vigor para novas obras e novas conquistas. A melhor vingança contra aqueles que me pretendem rebaixar consiste em ensaiar um voo para um cume mais elevado. E talvez não subisse tanto sem o impulso de quem me queria por terra. O indivíduo verdadeiramente sagaz faz mais: serve-se da própria difamação para retocar melhor o seu retrato e suprimir as sombras que lhe afetam a luz. O invejoso torna-se, sem querer, o colaborador da sua perfeição."

Portanto, tentemos fazer o que nos “aconselha” Papini. Tornemos os invejosos nossos colaboradores e façamos de sua falta de inteligência e total incapacidade de ter ou ser, de suas críticas, de suas tentativas frustradas de nos alfinetar e nos prejudicar e de suas injúrias um trampolim para seguirmos adiante sem perdermos tempo com essas pobres e infelizes almas e conseguirmos atingir objetivos cada vez mais elevados. Porém, se mesmo assim isso não bastar, não custa nada continuar usando os velhos e sempre poderosos ramo de arruda atrás da orelha, alho e muito sal grosso, pois, parafraseando os espanhóis, “Eu não creio em invejosos, mas que existem, existem”.

segunda-feira, 9 de março de 2009

FORÇA MAIOR

“Vem de antes do sol/ A luz que em tua pupila me desenha./ Aceito amar-me assim/ Refletida no olhar com que me vês.” (Adélia Prado) - Imagem: Google Imagens




AMAMOS PORQUE AMAMOS

Por Veruska Queiroz



Desculpando-me com meus leitores por essa aparição em caráter extraordinário, pois costumo escrever aqui apenas uma vez por semana, decidi, por pura inquietude minha, transformar o que seria apenas uma resposta de e-mail em mais um texto, pois não dá para deixar de notar que o assunto é recorrente e provoca há anos, senão décadas ou séculos calafrios de toda a ordem e muitas, muitas discussões.

Recebi um e-mail muito interessante de uma pessoa dizendo que, após ler meu texto anterior a esse, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sua cabeça fervilhou em questionamentos e, a certa altura do e-mail, entre outras inteligentíssimas, me fez a célebre (e psicanalítica) pergunta: "Afinal, o que querem as mulheres?" Ele e seu grupo de amigos tem em torno de 45/50 anos, trabalham, são pessoas interessantes, inteligentes, tem uma vida social, emocional e economicamente estável e confortável, alguns com filhos, outros sem, mas não conseguem uma namorada; e não conseguem saber ou definir muito bem o que querem as mulheres quando o assunto é relacionamento.

Bem, para começar não existe uma receita ou uma fórmula mágica de como são os homens que as mulheres querem e também como são as mulheres que os homens querem - e aqui vamos dar menos importância às características físicas, pois a obviedade aqui se repetiria em praticamente todos os casos. Não existe uma medida, exatamente porque o que encanta, desorienta e provoca, ao mesmo tempo, serenidade e febre, alegria e dor, destempero e paz são, desde os primórdios, coisas outras não tão visíveis e quase nunca explicáveis, ou seja, na maioria das vezes, inconscientes. Então, não há regras, não há previsibilidade, não há sins nem nãos, não há razão. Há somente algo que não se explica, não se enquadra, não se entende, não se define; se vive.

E, como se não bastasse essa perspectiva psicanalítica, mulheres e homens são todos diferentes uns dos outros, não existem dois homens ou duas mulheres iguais. Um homem é capaz de gostar, por exemplo, de uma mulher sem muitos atributos físicos, não tão inteligente e culta e outro detestar uma mulher por esses mesmos motivos ou características. Uma mulher pode gostar de um homem porque ele é inteligente, lindo, culto, disponível e elegante, mas outra pode gostar exatamente por causa de características opostas. E ainda há quem goste - não se espantem - dos ditos cafajestes, mulherengos e mentirosos - e aqui não contam, infelizmente, posição social, inteligência, beleza ou cultura, porque esse tipinho está nos mais diversos lugares. Então, o que faz realmente uma pessoa se apaixonar por outra?

Freud nos fala que, as primeiras experiências de uma criança em seus primeiros anos de vida com as figuras parentais - ou com quaisquer figuras que tenham a responsabilidade de cuidar da criança - serão cruciais para determinar o modo como esse sujeito irá se relacionar com suas futuras escolhas amorosas. Essas escolhas futuras derivam de vários sentimentos do sujeito pelas figuras parentais e do modo como esses sentimentos irão se desenvolver, se fixar ou não no psiquismo. Em termos gerais, podemos dizer que há uma íntima ligação entre as condições de uma pessoa para amar e seu comportamento no amor, que decorre da constelação psíquica e de todos os aspectos positivos e negativos que a criança apreende relacionada ao par parental da mais tenra idade. As escolhas amorosas futuras são escolhidas (para ficar claro, esse processo todo é inconsciente), em sua maioria, como substitutos no que diz respeito às representações psíquicas feitas em relação às figuras parentais.

Idealizamos, supervalorizamos a pessoa amada e passamos a considerá-la única e insubstituível, naturalmente. Um parênteses: só para lembrar, um dia também fizemos isso em relação aos pais. Atribuimos a pessoa amada caracteríscticas ideais que nos importam ou nos inspiram e que, na realidade ela não tem, mas essa atribuição é inerente ao ser humano e constitutiva do sujeito quando ele se relaciona. E, porque há uma tendência de todos nós, em certa medida, a essa repetição das representações psíquicas em relação às figuras parentais em nossos relacionamentos adultos, podemos concluir que, a pessoa amada é envolvida com uma multidão de imagens superpostas, cada uma delas carregadas de milhões de sentimentos: de amor  - na medida, em excesso ou faltoso - de ódio, de angústias, de ansiedades, de inseguranças e é fixada inconscientemente através de outra multidão de representações simbólicas, cada uma delas ligadas a um determinado aspecto seu que tenha marcado a outra pessoa em questão, que também terá, por sua vez, outra gama de imagens e representações para lidar.

Em suma, o que faz com que nos apaixonemos por fulano ou fulana e não nos apaixonemos por beltrano ou beltrana é uma série de simbolismos emaranhados e infinitas imagens - simbolismos e imagens, na maioria das vezes, inconscientes - carregados dos mais variados sentimentos e conceituações que pouco tem a ver - embora eles, em certa medida, também defina os padrões - com características pessoais visíveis ou não ou ainda com a beleza do outro ou seu estado civil. Os buracos aqui, para o bem e para o mal se encontram bem mais embaixo do que o cotidiano revela.

“O amado é, pois, primeiramente, uma instância psíquica. Ele é sem dúvida, uma pessoa, mas é primeiramente e sobretudo, essa parte ignorada e inconsciente de nós mesmos.” (J.D.Nasio, 1997)

Nasio ainda nos lembra que somos um ser híbrido portanto e, quando amamos, sempre amamos um ser híbrido também, constituído, ao mesmo tempo, pela pessoa em si, e pela sua presença fantasiada - porque não temos como nos desgrudarmos totalmente, mesmo que façamos análise para o resto da vida, das nossas experiências infantis e de todas as posteriores consequências dessa vivência - e inconsciente em nós.

Em resumo, amamos porque amamos. Amamos porque, pelo menos uma vez na vida, já amamos alguém (o par parental) e a dinâmica psíquica vai desejar que essa experiência se repita. Amamos porque é necessário amar - com tudo de bom e de ruim que isso trás em si mesmo e deixa como herança - porque não podemos fugir de amar, porque o amor em si foi o que nos constituiu, para o bem e para o mal, seja com boas ou más imagens. Amamos porque o amor é o motor de quase todas as transformações.
Amamos porque amamos, sem explicações, entendimentos, sem receita de bolo, sem regras, sem porques e sem padrões estabelecidos. O amor não é feito para ser conceituado, explicado, entendido ou padronizado. O amor é feito para amar. E ponto.


“Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários[...]
Porque amor não se troca[...]
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.”

(C.Drummond de Andrade, in: As sem-razões do amor, 2005)

domingo, 8 de março de 2009

FERA, BICHO, ANJO... MULHER


RECEITA DE MULHER

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito[...]
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação imunerável.
(Vinícius de Moraes, 1990)





SINS E NÃOS
Por Veruska Queiroz


Não, hoje não tem foto. Hoje vou nua, mas não crua. Lua, cheia de fases e faces no meio da rua. Hoje vou vestida dos meus sins e dos meus nãos. Hoje vou vestida totalmente de mim mesma.

Sim, eu já sonhei ser bailarina de carreira. Depois malabarista. Depois atriz. Depois apresentadora. Qualquer coisa para estar num palco. Sim, tenho formação em Ballet Clássico, dancei Jazz, Sapateado e Flamenco e todas essas formas de expressão corporal - além de serem paixões em minha vida - ensinaram-me coisas lindas que, entre milhões de outras fizeram parte da minha formação pessoal: disciplina, boa postura, excelente consciência corporal e refinado senso estético, autoconhecimento, auto-estima, respeito ao espaço do outro, determinação, superação. Fiz aula de canto no colégio e fiz curso de teatro na adolecência. Escrevi, dirigi e atuei com as amigas de infância e adolescência muitas pequenas peças para apresentar na escola. Lembro-me de todas elas até hoje, emociono-me e tenho muito orgulho dessas experiências. Queria ter aprendido piano e adoro também violino.

Não, meus sonhos de infância não foram todos realizados, obviamente. Mas continuo em cima do palco... o palco da minha vida, da interação com as pessoas e com o mundo, o palco onde são encenadas todas as minhas glórias... e virei Psicanalista - embora para tanto, eu tenha de sair do palco temporariamente e deixar outros personagens atuarem, pois esse é um dos princípios básicos dessa profissão tão linda.

Não persisti em todos os meus sonhos (todos?) acho que por causa do meu nariz torto e arrebitado demais. Também por causa de minha natureza inquieta e questionadora. Talvez não conseguisse mesmo ficar sentada atrás de um piano aprendendo dó, mi, fá sol, lá si  - mas ainda tenho vontade. Também por causa das minhas pernas grossas, do meu pé pequeno nº 34, do meu aparvalhamento, da minha teimosia, da minha falta de tato, da minha língua solta e da minha impulsividade. Sim, isso é uma parte de mim - tenho milhares, embora hoje consiga carregar menos nas tintas, domando melhor meus aspectos negativos e assim conseguindo mais flexibilidade, liberdade e leveza.

Sim, eu uso maquiagem. Adoro pintar faces, olhos, papéis e principalmente o sete. Mas me sinto linda mesmo sem rímel, blush e batom. Talvez porque, ao longo do tempo, eu tenha aprendido a ser totalmente eu mesma e isso me trouxe muito aprendizado e muita liberdade. Quando somos nós mesmos, ficamos extremamente à vontade seja maquiada ou de cara lavada, seja num Chanel ou num vestido de algodão que colocamos à noite para nosso merecido descanso. Porque como dizia a própria Mademoiselle Chanel: “Procure a mulher dentro do vestido, se não há mulher, não há vestido.” Certamente porque eu seja, hoje, mais bonita do que nunca. E talvez porque eu não fique mais esperando o olhar do outro para me sentir assim. Quando me olho no espelho, me sinto extremamente bem e feliz no papel de mim mesma e me sinto belíssima em minha própria pele ou em qualquer pele que eu queira usar, até a dos casacos.

Sim, eu me destaco. Chamo atenção positivamente das pessoas e demorei algum tempo para entender o que isso significava e, principalmente para aprender a lidar corretamente com essa característica que hoje considero um dom e uma parte inerente de mim. Nasci assim, sou assim e verdadeiramente amo ser assim. Gosto de aparecer e apareço, até mesmo sem querer. Adoro ser admirada. Adoro ser cortejada. Adoro ser paparicada. Adoro aconchegos e mimos. E adoro ser elogiada. Admiro e elogio também, mas somente quando algo me toca, me instiga ou me fascina. Adoro essa troca que a vida proporciona. Ela nos traz um olhar sobre o outro e sobre nós mesmos que poder ser muito bonito e enriquecedor.

Sim, eu tenho cuidados com minha saúde e estou na minha melhor forma e no meu melhor momento em todos os aspectos. Aliás, um parênteses - quem se ama de verdade, tem amor e brilho próprios - além, obviamente de inteligência e elegância, para dizer o mínimo - sempre estará em sua melhor forma e em seu melhor momento. O tempo aqui - ao contrário do que acontece com pessoas descontentes com a vida ou consigo próprias, por qualquer motivo que seja - é o maior e melhor aliado. Sim, meu manequim é 36 e peso 50 Kg em 1,66 de altura. Descobri uma maneira maravilhosa de exercitar meu corpo e minha mente e minha alimentação é uma delícia de tão fresquinha, gostosa e saudável, mas não faço o tipo “empirocada da cabeça” e não sou definitivamente adepta do “modo obcecado paranóide robótico” de ser de quem vende até a alma para seguir os padrões da forma física (e psíquica) “esquálida-esquelética andróide” sem expressão e sem forma. Penso que a beleza - em todos os sentidos - e a boa forma física são aspectos muito mais de dentro para fora do que de fora para dentro. Ter uma alimentação adequada, boa e saudável e ter uma boa qualidade de vida física, psíquica e emocional podem fazer muita - na maioria das vezes, toda a - diferença na beleza como um todo.

Não, não tenho botox, nem preenchimentos e nada do gênero e, decididamente, precisarei de mais uns 25 anos, pelo menos, para fazer uso deles, sem nenhuma hipócrita modéstia. Sim, minha genética foi generosíssima comigo, obrigada. E sim, acho horrível e esteticamente monstruoso esses rostos sem expressões de quem fica com essas bochechas rosadas brilhantes de preenchimento, essas bocas de pato, esses olhos arregalados e sobrancelhas arqueadas de Sr. Spock de tanto botox. Inteligência, bom senso, moderação e equilíbrio podem ser o limite entre o belo e o ridículo.

Mas não, não abro mão das minhas vitaminas, das minhas massagens, das minhas meditações e dos meus cremes que são verdadeiras bênçãos. Gosto muito de todas essas possibilidades de cuidados com a própria saúde. E estou aprendendo a gostar muito de água... Mil vivas. Aliás, estou aprendendo muitas coisas ultimamente... mais mil vivas.
                                                                             .
Não, não consigo deixar os chocolates e os "doces de criança" - como eu os denomino - meus únicos pecados e vícios alimentícios. Juro que tento resistir a eles e, para tanto, lanço mão até de meditações, mantras, palitinhos de cenoura e qualquer receitinha que me passam para "distrair" minha ensandecida vontade  -como se ela fosse se deixar enganar assim tão fácil. Mas a luta é desigual e o chocolate sempre vence no final. Desisti de tentar resistir, mas hoje me imponho uma mínima disciplina. Funciona na grande maioria das vezes.

Sim, eu tenho muitas roupas e muitos sapatos e muitas bolsas e muitos perfumes e muitos cremes e muita maquiagem e muitos óculos e muitas jóias e muitos livros e revistas e muito das muitas coisas que gosto. Para o bem - na maioria das vezes - e para o mal - em raros casos - não me contento nunca com pouco. Não sei, mas acabo sempre considerando isso mais qualidade do que defeito - também em outras diversas situações da minha vida. Sou consumista, admito. E exageradíssima, como todas as mulheres verdadeiramente mulheres que se amam, se cuidam e amam ser mulheres com todos os seus excessos, loucuras e beleza. Mas nunca deixarei de considerar caráter, educação, ética, inteligência, elegância, bom humor, cultura, conhecimento, alma, coração, paz e felicidade real mais importantes do que tudo o que existe. Mas hoje, às vezes consigo me conter um pouco. Não porque me transformei em “ativista anti consumismo neo chatismo”. Decididamente não - até porque quem é assim como eu, nasce assim e será sempre assim, de uma forma ou de outra - mas porque estou em uma fase onde a prioridade mudou um pouco de foco. E daqui a pouco muda de novo e de novo e de novo...

Sim, eu já sofri pelas "coisas do coração". Muitas vezes. Já fiz sofrer também, até mesmo involuntariamente e sofri imensamente por isso. Mas a vida ensina quando estamos preparados para aprender - me arrependi, aprendi e também já me perdoei. E sigo adiante, já que tudo é experiência e aprendizado quando entendemos os processos de crescimento e amadurecimento e nos propomos a eles. E já perdi muita gente amada para sempre mesmo, daquela maneira definitiva, de forma abrupta e doloridíssima. Mas com esses “arrancamentos” aprendi a transformar a dor em força, impulsão, em mais beleza e em crescimento.

Sim, eu sou muito feliz, amo ser quem eu sou, tenho tudo o que eu quero e só tenho a agradecer. Porque amo e sou amada, porque Deus colocou e coloca sempre em meu caminho e em minha vida pessoas lindas, dotou-me de muita inteligência, muito caráter, muita ética, muita determinação, muita coragem e muita fé e a soma de todos esses fatores resultam em muita sorte e em muitas realizações. Amo minha profissão e tudo o que faço, meu anjo da guarda é o mais maravilhoso que se tem notícia, gosto das pessoas e acredito no amor, na felicidade e no bem, e, exatamente por isso, eles são meus companheiros diários e eternos.

Sim, sempre vai faltar alguma coisa, seja lá no que for e faz parte da maturidade entender isso como natural... Freud disse que somos sujeitos insatisfeitos. Gosto muito dessa perspectiva psicanalítica, pois quem está insatisfeito - não com tudo e não demais, claro - sempre quer buscar mais, quer aprender mais, quer doar mais, quer receber mais. Adoro receber: amor, pessoas, flores, presentes, e-mails, carinho, abraços, beijos. Dôo também, sempre, até quando não é para doar ou não querem receber. Mas acho sempre melhor sobrar - também não muito - do que faltar. O que sobra a gente pode aparar ou reciclar e transformar em muitas outras coisas, já o que falta...

Não, definitivamente não nasci para ser, ficar ou viver sozinha. Adoro pessoas. Adoro movimento. Adoro conviver. Adoro a vida. Adoro viver. Mas, sim, sinto-me sozinha, às vezes. E não me assusto mais com isso. Acho-me ótima companhia. Essa força maior que me guia e essa luz imensa que vem de dentro vão se transformando em flores no meu caminho e no meu olhar para o mundo.

Sim, já travei batalhas quase medievais comigo mesma e com o mundo, que se transformaram, exatamente porque batalhei muito, em tudo de maravilhososo que eu sou e tenho e me orgulho muitíssimo de mim. Sempre fui muito guerreira e descobri muito cedo a força inquebrantável que eu tenho, para tudo. E isso me deu suporte para transpor as barreiras que, aos pés de qualquer outra pessoa, seriam intransponíveis. Orgulho-me muito dos meus ganhos e também das minhas perdas, mas, principalmente da maneira como lido com eles. Sou o que sou hoje, em todos os aspectos, graças a essa força e verdadeiramente amo quem eu sou. Fiz as pazes comigo e com o mundo há muito e hoje vivo em lua de mel com meus botões.

Sim, eu já nasci elegante, perfumada, de salto alto, cheia de penduricalhos e fazendo barulho. E não sou fútil. Sei e gosto de me vestir muitíssimo bem. E não tenho nenhum problema com isso, nem para vivenciar nem para dizer. E mesmo que eu tivesse, a minha imagem falaria por mim, inevitavelmente... Já disseram até que eu crio tendências... vai saber. E também que eu deveria entrar para o mundo da moda... E também que eu deveria escrever livros sobre estilo, moda, elegância e etiqueta... quem sabe. E quanto a ser fútil ou qualquer outra coisa, conquiste o privilégio de me conhecer e conviver comigo primeiro...

Sim, amo enlouquecidamente o inverno e sou apaixonada com o tempo frio. Tenho ascendência e sangue espanhóis - da Andaluzia - e muitas das minhas características são européias. Acho o inverno maravilhoso, em todos os aspectos. O sol brilhante no céu azul de brigadeiro me faz sorrir e sinto-me verdadeiramente feliz com ambos, mas para mim a temperatura, durante todo o ano, nunca passaria dos treze graus. Amo verdadeiramente o inverno e o tempo frio. Mas a primavera e o outono também me encatam. A primavera me faz florescer e me recriar e no outono deixo as velhas folhas caírem para, talvez fertilizarem outros campos e jardins e para que eu possa receber outras novas e belas, me preparo e me aquieto para resurgir no aconchego e na beleza do inverno novamente.

Sim, gosto de música classica e jazz. E amo tudo dos anos 80. Também alguma coisa de MPB e bossa nova. Adoro ballet, flamenco, tango e danças em geral; concertos, museus, teatro, meus muitos e queridíssimos livros, poesias, artes, história, bons e inteligentes filmes, boas e inteligentes conversas. Amo vinhos, espumantes e sair para jantar - a gastronomia, tanto internacional como nacional me fascina. Tenho loucura por tudo com chocolate, nozes, avelãs e amêndoas e também nutella, leite condensado e sorvete de flocos, pistache, café e baunilha. Café espresso e cappuccino são paixões e nunca abro mão das minhas saladas, dos chás, de todos os queijos, das frutas - morango, lichia, manga, kiwi, uva, melão, maça, pêra, laranja e mamão e leite com nescau gelado à noite.
                                                                            
Não, decididamente não gosto de samba, pagode ou qualquer coisa do gênero. E não ser um bom sujeito, ser ruim da cabeça ou doente do pé e qualquer outra coisa parecida, nesse caso, é para mim, um verdadeiro e primoroso elogio, acreditem. Sertanejo e funk nem nascendo de novo mais um bilhão de vezes.

Sim, saio desfilando por aí, como modelo, como eu mesma, como rainha, como plebéia, como fada e como bruxa. E me mostro, sem medo. O que sou, sou. E sendo, alguns privilégios se transformaram em direito, porque foram conquistados e trabalhados diariamente, num exercício constante de aprimoramento.

Sim, tenho amigos lindos - de infância e adolescência, de depois da adolescência, da vida adulta e madura, de depois e depois de vários depois, de vários lugares, de todas as idades - verdadeiros, iluminados, companheiros, amados e talentosos que seguem comigo - de perto ou de longe geograficamente, mas sempre perto e lado a lado no coração e nos pensamentos - nessa viagem louca de viver, todos os dias. E são eles meus mestres, meus amparos e meus tesouros. Sim, eu tenho muita sorte.

Sim, vez ou outra, convivo com uma ou outra tristeza, uma ou outra frustração, uma ou outra decepção. São, às vezes muito difíceis, mas nenhuma é grande o suficiente para me fazer infeliz e nem forte o bastante para me derrubar, pois aprendi a elaborá-las e dar a elas apenas o valor que elas possuem, nem mais, nem menos. Com o passar do tempo descobrimos que essas pequenas decepções e frustrações não conseguem fazer tanto barulho assim, porque, ainda que elas aconteçam, estará sempre em nossas mãos a escolha de como queremos nos sentir e de como iremos lidar com elas.
                                                                           
Sim, eu tenho uma percepção apurada de mim mesma, das pessoas à minha volta, dos sentimentos, das sensações e das coisas de um modo geral. Dizem que essa percepção nasce com a pessoa que a possui. É um dom, algo inerente à essência da pessoa e constitutiva de sua subjetividade. Nasci assim, sou assim. Isso me traz muito crescimento e eu gosto muito disso. Talvez por isso mesmo, gosto muito da vida, acredito e gosto muito das pessoas, gosto muito de boas conversas, gosto muito de conviver, gosto muito que é belo - e não só fisica ou esteticamente falando. Gosto muito de ajudar no que eu puder, sempre... mesmo que as pessoas não mereçam, não reconheçam e, por vezes, estejam até muito aquém de qualquer ajuda, seja por estupidez, incapacidade, covardia ou falta de inteligência mesmo... isso é problema delas, é entre elas e a Força Maior (que eu chamo de Deus e cada um pode chamar do que quiser) e, decididamente, isso e alguns pormenores da vida não mudam em nada quem eu sou, não mudam a minha essência, minha alma e meu coração, não mudam a minha crença na vida e nas pessoas e, principalmente, não mudam os caminhos maravilhosos, iluminados e prósperos pelos quais escolho todos os dias seguir.
                                                                                   
Sim, sei que, por ser quem eu sou e me apresentar de determinadas formas específicas em diversos segmentos de minha vida, estou propensa a olhares mais observadores e, às vezes, nem tão bons de muitas pessoas - algumas literaturas definem isso como inveja. Pode ser - e aqui não há nenhuma postura arrogante ou idéias megalomaníacas como alguns, por puro desdém, insatisfação com a própria vida e seus desdobramentos ou por pura e autêntica inveja, podem supor. Apenas tenho conhecimento e valorizo muitíssimo a pessoa que sou. Gosto de mim mesma, da minha essência, da minha inteligência, da minha elegância, dos meus valores, das minhas qualidades  - e até dos meus defeitos, porque não? - das minhas lutas, das minhas transformações e crescimento, da minha vida e sei que essas coisas podem mesmo despertar, no mínimo a curiosidade e também a tão terrível a inveja das pessoas. Acontece em todo o canto do Planeta, com muitas pessoas, a todo momento. Decididamente não me importo e não me permito deixar-me afetar com essas pequenezas. Tenho realmente coisas muito mais importantes e enriquecedoreas para fazer em minha vida. Quem sente isso ou aquilo em relação a uma outra pessoa - principalmente se forem sentimentos não tão bons e nobre que consiga lidar com isso. Fazer o que? Ignoro solenemente essas pessoinhas que considero medíocres e procuro a saída mais bem-humorada para esses casos: continuo minha linda e próspera caminhada feliz da minha vida, me benzo, ando com meus patuás, figas, sal grosso e arruda e o que bate aqui volta e em carga dobrada, porque a lei de causa e efeito - ou da ação e reação ou lei do retorno, como queiram - é infalível e, principalmente, porque sou “abençoada por Deus e bonita por natureza”.

Não, eu não sou tão paciente, tão sensata, tão consciente e tão constante quanto eu gostaria, mas como acredito que algumas coisas nessa vida funcionam na base da compensação, sei que meu altruísmo, minha generosidade, minha lealdade e meu coração de natureza boa suplantam minha impaciência, minha impulsividade, minhas fraquezas e minhas infantilidades... Arghhh.

Sim, eu sou um mulherão. E sou bailarina, atriz, malabarista, apresentadora, mãe, avó, tia, santa, profana, fada, bruxa, psicanalista, namorada, amante e pianista. Conquistei e adquiri o direito de poder exercer tudo isso. Construí meu próprio palco. E sou a atriz principal nele, sempre.

E sim, eu sou muito poderosa. E forte. Mesmo porque é em minhas entranhas que luto, descanso, me recrio, me renovo e revivo. É por dentro que preparo meus monólogos, meus diálogos, minhas trocas de figurino, meus atos. E sim, sempre haverá quem - geralmente os infelizes, desocupados e mais uma vez, os invejosos - ache isso ou aquilo, assim ou assado para tudo que fazemos ou somos e, no meu caso, há muito isso não me importa e não há nada que me faça perder tempo com essas pobres almas, pois, decididamente esses "achismos" não mudam o que verdadeiramente e maravilhosamente eu sou. Mas, como eu não tenho controle sobre isso, assim como não se tem controle sobre um tropeço ou um espirro no palco; aprendi a improvisar, a criar, a recriar, a reinventar e seguir lindamente adiante.

Sim, sou fera, sou bicho, sou anjo... sou mulher!!!

segunda-feira, 2 de março de 2009

NÃO É APENAS UM SONHO

"Podemos facilmente entender ou perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando encontramos homens que têm medo da luz." (Platão) - Imagem: Corbis Images





VIVER SOMENTE, NÃO BASTA


Por Veruska Queiroz


Qual é a saída para as pessoas que querem ver realizados seus sonhos mais íntimos, não se limitam, que fogem dos estereótipos, que preferem as febres de uma vida vivida intensamente, mas com verdade, coragem e realização à uma vida onde a maquiagem é o personagem principal e a realização se esconde atrás da falsidade do comodismo confortável e do falseamento da própria felicidade e da vida?

Essas são somente algumas perguntas que rondam nossas mentes depois de assistirmos “Foi apenas um sonho”. O filme, de direção de Sam Mendes, cujo título original é "Revolutionary Road" (Rua da Revolução) é uma adaptação do romance de Richard Yates e potencializa a crítica à mediocridade e ao “socialmente desejado e aceito” ou, em outras palavras, a essa máquina de hipocrisias e mentiras chamada sociedade moderna a que alguns se sujeitam e na qual morrem, infelizmente, para e em si mesmos. Denso e ácido, não é um filme apenas sobre uma determinada tragédia cotidiana, mas especialmente uma produção sobre o quanto angustiante e triste pode ser a vida de uma pessoa que queria ou quer mais, que reprimiu desejos e sonhos e que não vê saída além de sucumbir, resignar ou se acovardar, porque não tem coragem para mudar, destruir o que estava supostamente construído e tentar reconstruir de forma mais sincera o que quer que seja o seu desejo. Trata-se de uma história dura sobre a falência de um casamento mais ou menos doente desde o início - embora isso não esteja exatamente claro no filme para muitos e a morte de um sonho e tudo o que pode advir disso. Um dos temas principais do filme é realmente o medo - ou a covardia, para alguns - que acaba paralisando a tantas pessoas. Um medo de ousar, de arriscar, de viver e não saber onde isso dará - como se esse saber fosse possível.

"Freud descobriu que, toda vez que somos levados a desistir de alguma satisfação ou renunciar algum desejo, a raiva dessa renúncia se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros(...) Logo, frustrados zelamos pela prisão daqueles que não se impõe as mesmas renúncias."(C.Calligaris, 2001). O resultado disso é desastroso, pois numa espécie de quase vingança infantil desejamos prender - ou estar sempre nos esquivando - repreender, criticar, agredir e depreciar o outro por aquilo mesmo que nos sentimos presos, agredidos ou depreciados, seja no momento atual de nossas vidas, seja em algum momento outro ou mesmo desde a mais tenra idade. Ou pior ainda, por conta dessa raiva podemos não conseguir mesmo estabelecer vínculos genuínos de afeto com as pessoas, por querermos puní-las constantemente. De uma forma ou de outra, a raiva suscitada advém - muitas vezes até inconscientemente - de alguma forma de renúnicia, da não realização dos nossos desejos ou dos nossos sonhos e aspirações mais íntimas, em algum momento de nossas vidas. Resultado: uma tristeza imensa pela falência de nós mesmos, pelas relações falidas por inércia, pelas irrealizações e pela falta de (re)posicionamento diante de nós mesmos ou da vida e a aterrorizante insatisfação pela covardia, pelo medo ou acomodação em mudarmos nosso direcionamento. Tudo vira um círculo vicioso e doentio.

Todos temos sonhos, projetos, expectativas e perspectivas que, em vários momentos de nossas vidas não podemos realizar por uma gama infinita de razões. Mas diferente é não realizarmos coisas, não buscarmos mudar algo, alterar a ordem ou virar a mesa se necessário por questões de comodismo ou medo de sair do lugar confortável em que estamos. A vida é mútável. A vida é pulsante. Há horas na vida em que precisamos ter coragem, ousadia e até loucura, que seja. Não dá para maquiarmos a vida para todo o sempre, amém. E é exatamente sobre a linha que divide a aceitação dos desejos ou dos sonhos não realizados e a persistência em tentar realizá-los que “Foi Apenas Um Sonho” nos fala.“Foi Apenas um Sonho” é, penso eu, um protótipo do vazio existencial e das amarguras que, por vezes, tomam conta das pessoas de um modo geral, depois que o pano se encerra. Depois que as luzes se apagam no teatro, a vida continua lá fora, com todos os atos, encenações, trocas de figurino, monólogos, diálogos, loucuras, medos, sonhos, aspirações, decisões a tomar, novos sonhos a sonhar, novas perpectivas que estão sempre mudando e é preciso se reiventar sempre para enfrentar com coragem os imprevistos e mudar de rota caso seja necessário. Triste que isso seja tão raro.

Frank e April são um casal jovem com seus dois filhos na década de 50 e mesmo com todo o seu charme e irreverência, eles se vêem, cada um em seus recônditos mais íntimos, tornar-se exatamente o que não esperavam: um bom homem preso num trabalho de rotina e com muitos sonhos de naturezas diversas que não vêem possibilidade de realização e uma insatisfeita dona de casa que, exatamente pela insatisfação e frustração ao ver seus anseios mais íntimos não encontrarem suporte, está sedenta por realização e paixão. Determinados a mudar o destino, embora eles não consigam enxergar que precisam mesmo mudar a cada um internamente em primeiro lugar, eles tentam recomeçar. Porém, quando a tentativa vai para a prática, eles são levados aos seus extremos, exatamente porque a fonte de realização não é o que idealizamos fora de nós ou no outro – embora as idealizações e expectativas sejam inerentes e extremamente transformadoras, pois certo é que, "mudamos sempre (para melhor ou para pior) graças(...) ao amor de quem nos idealiza"(Contardo Calligaris, 2004) - um para fugir, seja qual for o preço, o outro para salvar tudo o que eles tem.

Enfim, o filme apresenta diálogos riquíssimos e faz, entre outras coisas, o espectador se estender para além do enredo do filme e pensar no que ele está fazendo de sua própria vida e questionar sobre o que precisa ser mudado antes que seja tarde demais. Além de transitar entre aspirações, sonhos e decepções, o filme mostra também, de forma convincente e real, a dinâmica dos sonhos particulares, muitas vezes postos de lado em nome de, por exemplo, uma vida falseada - seja lá em que sentido for - ou de um casamento falido ou ainda das máscaras que são colocadas pela vida fora, mesmo que isso custe quase tudo: realização pessoal, emocional e afetiva, dignidade, uma vida rica em afetos genuínos e alegrias, segundo os parâmetros de cada um, o que, na realidade, são os verdadeiros pilares da vida e são, exatamente por isso, os maiores desejos de todo ser, mesmo inconscientemente.

Os questionamentos são vários diante de um tema tão angustiante, tão desconfortável. Algumas pessoas vivem na ilusão da garantia das coisas. Gostam de saber que o mundo delas está “perfeito” ou pelo menos tentam a todo custo aparentar essa "perfeição", mesmo que o caos esteja instalado em todos os cantos disfarçada ou escancaradamente, corroendo silenciosamente a vida pulsante de todos os envolvidos; que são “felizes”, mesmo que isso não represente fielmente a realidade e precise de uma dose generosa de maquiagem, tinta e verniz. Gostam da falsa idéia de estabilidade e ordem, porque vivendo nesse "lugar quentinho e cômodo" não precisam questionar nada, nem a si mesmos; não tem de se lançar a gastar grandes energias para mudar isso ou aquilo, para reavaliar e transformar a própria vida de uma forma digna e verdadeira, para lutar por um novo amor, um novo emprego, mudar para uma nova cidade, acabar com um casamento que nunca trouxe realização pessoal e emocional a nenhuma das partes, partir para novos mares ou enfrentar algumas tempestades em nome da delícia de ser. Algumas pessoas são como o casal do filme, ou seja, querem garantias externas, vivem a querer fazer reformas, mudar os "móveis" e a "decoração" como se isso fosse o que caracterizasse a real e efetiva mudança da "casa", de uma situação ou da vida para terem a ilusão de se sentirem melhores, mais felizes ou realizados. E isso se mostra empobrecidamente triste e falido, tanto no filme quanto e, principalmente, na vida real.

Na vida não temos garantias. Temos um amontoado de expectativas, anseios, desejos, sonhos, idealizações, alegrias e tristezas, erros e acertos, conceitos capengas, feridas emocionais, carências, imperfeições, cicatrizes mal curadas, ambivalências e lutas (internas e externas). E, quem se dispõe a mais do que viver simplesmente, deve saber que a compra é feita do pacote completo. É claro que há pessoas que nunca farão nada e também há aquelas que farão de tudo - para o bem e para o mal. Mas, uma coisa é fato: sempre há o que pode ser feito, sempre há alternativas. O caminho que cada um escolhe implica vários fatores e isso, provavelmente daria outro texto, mas sempre há escolhas - para o alto ou para baixo, para um lado ou para outro, para o bem e para o mal, para além ou para aquém. Na maioria das vezes tateamos mesmo todos no escuro, escuro esse mais nocivo se for dentro de nós, pois aí podemos cair nas terríveis e tristíssimas armadilhas como as que caíram Frank e April e nas milhões de armadilhas que a vida nos apresenta, em vários sentidos. Mas não há garantias, há possibilidades. Possibilidades de vivências, experiências, aprendizado, crescimento e mudanças. Transformar essas possibilidades em potenciais realizações é uma outra questão, que está também ligada ao “quanto” desejamos realmente investir (libidinalmente) em nós mesmos, nos outros e nas coisas e, principalmente se queremos mesmo aquilo que desejamos. Viver somente, não basta.