segunda-feira, 23 de março de 2009

ATÉ QUANDO?...

“É tempo de infância/ Tempo de subir/ e descer: crianças/ Deixe-nas ser/ Um Novo Tempo precisa nascer/ Deixem que sejam crianças!/ Deixem-nas viver!” (Célia de Lima) - Imagem: Flickr




PAIS SEM RUMOS, CRIANÇAS FERIDAS

Por Veruska Queiroz


“É uma raça de todas as raças. É uma nação que ocupa o mundo inteiro. Uma tribo de milhões. Tem uma particularidade física em comum - são pequenos - mas fora isso são
diversificados, sem feições características. Até uma certa idade, falam a mesma língua indecifrável, depois começam a usar idiomas diferentes[...] Não importa em que condições tenham nascido ou que distância os separe, todos fazem a árvore e o homem no
mesmo estilo. Talvez esse exotismo explique a maneira paradoxal com que eles são tratados. Muitos são rejeitados, sofrem discriminações em alguns lugares e até campanhas de extermínio. Para muitos, a única maneira certa de escaparem desse destino é abandonarem sua tribo e aderirem ao inimigo, se transformando em nós, como camuflagem. Mas isso só acontece com o tempo e, até que aconteça, a vida é um risco.”
(Luis F. Veríssimo – O traço e o risco, 1997)

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Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão. (C.Federal/1988)

Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido
na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais. (ECA/1990)
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É com grande indignação e pavor que todos nós, quase diariamente, estamos tendo que conviver com o horror da violência contra nossas crianças e adolescentes. Assunto recorrente, eu sei, mas "é necessário que façamos alguma coisa mais, antes que elas cresçam" (Affonso R. de Sant'anna, 2003) - que falemos mais, que nos indignemos mais, que tomemos mais consciência, que denunciemos sem medo e que cobremos mais atitudes das autoridades no sentido de fazer valer a lei e aplicar com severidade as penalidades aos agressores. Entre os casos mais recentes, estão o caso da menina Isabella (com rememoração dos fatos e entrevista da mãe da menina exibidos ontem no Fantástico/Rede Globo), o pavoroso caso Josef Fritzl na Áutria, passando pelo caso Sílvia Calabresi e, dentre muitos outros, na semana passada, o caso da garota de programa que agredia um bebê de apenas 1 ano e 2 meses simplesmente porque ela “queria dormir e não suportava o choro da criança”. E isso sem falar das milhões de crianças que não são notícias nos jornais, mas que, diariamente sofrem agressões (sejam elas físicas ou psicológicas, explícitas ou veladas), abusos e mutilações. Recebi um grande número de e-mails de pessoas procurando uma resposta, através de suas indignações e revolta, para a crueldade que parece ter tomado conta de forma devastadora da humanidade nos tempos atuais. Há os que irão dizer que os tempos que aí estão, ou seja, essas formas de violência, sempre aconteceram, e que, talvez o que tem contribuído para que hoje elas sejam mais visíveis seja um maior desenvolvimento da consciência social em torno do tema da proteção à infância e à adolescência e também uma crescente mobilização em torno dos direitos humanos nos últimos 15, 20 anos. Sem dúvida esses fatores são bastante relevantes. Penso que eles devem ser sim, considerados face à contemporaneidade, mas meu receio é da ordem da subjetividade: receio que façamos dessas referências um viés para nos “acostumarmos” com a máscara cruel da violência que está nos tomando de sobressalto, embora ainda muito longe para muitos de nós (até quando?) e deixando-nos indignados, sem respostas e desamparados em nós mesmos.

As perguntas que não querem calar: O que está acontecendo? Porque agredir, espancar, aprisionar, torturar, queimar, atirar pela janela quem sequer tem condições para se defender? Porque tanta crueldade? O que explicaria tanta violência? O que estaria verdadeiramente por trás desses atos? O assunto é extenso e poderíamos nos enveredar pelo caminho de tentarmos entender a violência como um todo, como reflexo e consequência da modernidade, enraizada no modelo vigente das ideologias socio-culturais, mas, por uma questão de domínio contextual e incômodo interno, meu e de muitas pessoas que me escreveram, vou tentar me ater aqui apenas (apenas?) à violência doméstica praticada contra nossas indefesas crianças e adolescentes.

Numa perspectiva psicanalítica da violência, faz-se necessário aqui, um breve passeio pelo pensamento de Freud sobre o ódio para, a partir de então, tentarmos alinhavar e entender um pouco o mecanismo interno, que nem por isso é justificável, ressalto de antemão, do horror da violência.

Para Freud, a primeira relação de objeto (quando o sujeito é ainda um bebezinho) se caracteriza não pelo amor, mas pelo ódio. Ódio de qualquer objeto que se oponha à satisfação que o equilíbrio inicial do aparelho psiquíco proporcionava e que invada a consistência desse equilíbrio. No entanto, mesmo que pareça paradoxal, esse equilíbrio apresenta uma falha, um buraco, provenientes da sensação de falta que a necessidade de sobrevivência impõe. Assim, o ódio é uma constatação da estrutura humana: à falta respondemos com ódio. Em “As Pulsões e seus Destinos” (Freud, 1996[1915], vol. XIV), Freud faz uma correlação clara entre o sentimento de ódio e a sensação de desprazer: “O ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor. Provem do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo externo com seu extravasamento de estímulos. Enquanto expressão da reação do desprazer evocado por objetos, sempre permanece numa relação íntima com as pulsões autopreservativas."

Em suma, o ódio tem a ver, a princípio, com sentimentos de insatisfação, com o desconforto, com o incômodo, com o desprazer e não com a agressividade ou com a destrutividade. Para Freud, o ódio e o amor são forças vitais, inatas, primárias e constituintes da subjetividade do sujeito, porém, possuem fontes diferentes e somente depois de estabelecida a organização genital é que se tornarão opostos. Freud ainda dirá: “O ódio que se mescla ao amor provem, em parte, das fases preliminares do amar não inteiramente superadas”. Nas relações com o mundo externo e com os objetos, quando os mesmos forem fontes de sensações desagradáveis, o ego ansiará por se distanciar deles. O sentimento de repúdio se instala e o ódio que emerge, como excessivo pulsional, pode ficar sem lugar de inscrição, ou seja, pode não encontrar representação. Essas relações com o mundo externo (com o outro, com os objetos) que estão na base da constituição do sujeito, podem então, se transformar num confronto destrutivo. Neste caso, o ódio (ou o desprazer originário) aparece sem o anteparo que permite a organização do sujeito e pode então se transformar em violência.

A violência, diferentemente do ódio que tem um caminho e um fim certos visando um objeto próprio, aparece como impulso desordenado, sem lugar e sem nome, como excesso pulsional. Esta violência é consequência direta das tentativas frustradas do sujeito em ser acolhido, o que permitiria um lugar de inscrição para as pulsões. Quando não há esse lugar e não há nenhum contraponto (autoridade, Lei, leis, presença amorosa ou impeditiva) que permita o sujeito nascer em sua subjetividade, o ódio prolifera com força total provinda da sensação de não ter lugar algum, de não ser reconhecido e se transforma em violência. Em suma, a violência pode ser vista como um transbordamento do ódio quando este não encontra amparo, suporte e direção para sua força.

Em resumo, entendendo a violência como transbordamento do ódio e impulso desordenado fruto de tentativas frustradas do sujeito, na mais tenra idade, de ser acolhido e reconhecido, podemos pensar também em desamparo. Aqui, desamparo mais no sentido psicológico, embora o desamparo físico também possa acontecer, na figura da negligência. Esse sujeito/bebê cresce, mas as marcas desse passado são indeléveis. O sujeito se torna um adulto com essa inscrição permanente no psiquismo. É claro que, conhecer o mecanismo psíquico no qual esse sujeito está envolvido desde, praticamente seu nascimento, não justifica nenhum ato de violência praticado, posteriormente, em sua vida adulta, no caso aqui, contra crianças e adolescentes e nossos corações tem todo o direito de se indignarem e se revoltarem com esses adultos, com esses pais sem rumo, mas, pelo menos, aponta para algumas possíveis respostas e direções. Voltando ao desamparo, ele é, no adulto, corolário do próprio desamparo da criança e vice-versa e os crimes domésticos colocam em evidência, principalmente esse desamparo infantil, que é, em última instância o desamparo escancarado desse adulto perdido, sem limites, incapaz de educar, incapaz de oferecer limites sadios, incapaz de distinguir autoridade e violência, “pulso firme” e coerção física ou psicológica, incapaz de amar.

Pais sem rumo, crianças feridas. Feridas fisicamente, psicologicamente, moralmente, mas, principalmente, feridas no amor de um outro para si e, por consequência, no amor a si mesmas, feridas nas identificações sadias de afeto, segurança, proteção e amparo. Feridas nos direitos básicos à vida e à dignidade.
Outra pergunta que não quer calar: Até quando?