segunda-feira, 4 de maio de 2009

CORAGEM E OUSADIA.

"Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas com freqüência são também a fonte de nossa força."(S.Freud) - Imagem: Psiconet/ Consultório e Divã de Sigmund Freud



NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM DIVÃ
Por Veruska Queiroz


Bem, primeiramente preciso me desculpar pela ausência na semana passada. Numa outra oportunidade tentarei elaborar algum texto sobre as experiências vividas externa e, principalmente internamente que me levaram, como sempre, a (re)inventar a mim mesma, mesmo num curto – para alguns - período de uma semana. E, por conta disso e de mais um monte de coisas, não coincidentemente claro, fui assistir ontem ao filme “Divã” com direção de José Alvarenga Jr. (o mesmo de “Os Normais”) adaptado da peça homônima, ambos baseados no livro de mesmo nome de Martha Medeiros. Tentando elaborar meus sentimentos e minhas impressões sobre o filme, fiquei pensando se o mesmo entraria somente na categoria de uma comédia, que é o tom que se pretende passar quase o tempo todo (e, diga-se de passagem, cumpre belíssimamente esse papel e as risadas – ótimas risadas - são do começo ao fim) ou poderia ser também um drama, pois, ao telespectador mais perspicaz e sensível, o filme faz pensar sobre o nosso cotidiano, às vezes, tão somente vivido de forma quase automática, onde não paramos para nos perguntar - muitos porque “não podem” - o que realmente nos move, se somos felizes ou não, se está tudo bem mesmo (sem máscaras, meias verdades ou mentiras veladas) com nossa carreira, nosso casamento, nossa relação com nossos filhos, namorados, amigos, etc... Um parênteses: quando digo que muitos “não podem”, não poder aqui assume o sentido de não se dar conta conscientemente "de ver com olhos de enxergar" - como diz o Rubem Alves - o tanto de poeira acumulada e jogada para debaixo do tapete, de não dar conta de parar para fazer honestas reavaliações da própria vida, das reais realizações pessoais e emocionais ou não, dos sonhos verdadeiros da alma. Enfim, sabemos que muitas pessoas vivem com o piloto automático ligado, vivendo uma vida vazia, triste e medíocre por covardia e medo de ter de olhar para dentro e descobrir, muitas vezes, alguns pedaços de pão bolorento e ter de fazer alguma coisa com isso. A estória do filme é leve, poética, divertidíssima e, ao mesmo tempo, é densa e devastadora, embora isso não fique explícito a um olhar mais pragmático e menos atento. Na verdade, para um certo grupo de pessoas - aquelas que, embora precisem, nunca terão coragem suficiente para dar “aquela virada” na própria vida; o filme soa como uma certa libertação e redenção: através dos conflitos e questões existenciais da personagem, há a possibilidade de se confrontar com os próprios fantasmas, mesmo sequer cogitados e jamais confessos e com a possibilidade de se desejar realmente querer ser feliz.

Em meu último texto falei exatamente sobre essa possibilidade da felicidade indicando que, dentre outras coisas importantíssimas, ela seria um componente intrínseco constituída de vários momentos de alegria que cada sujeito pode ou não carregar no íntimo de sua alma e a chave para todo o mistério estaria, portanto, dentro de cada um de nós e que deveríamos, para tanto ter uma dose generosa de ousadia e coragem. Segundo nos aponta a própria experiência de se viver, a felicidade acompanharia o sujeito que aprendeu a conhecer melhor a si mesmo e, por conseqüência, ao outro, e Escolheu (assim mesmo, com letra maiúscula), SER feliz, buscando realizações pessoal e emocional, acima de tudo, com capacidade para amar e trabalhar que, segundo Freud, seriam as duas condições primordiais para o equilíbrio psíquico e a saúde mental.

Mercedes (a maravilhosa Lília Cabral, que também protagonizou a peça e é co-roteirista do filme) é uma mulher “padrão” e "normal", casada com um homem também “padrão” e "normal", artista plástica com recente exposição de suas obras, professora particular de matemática que teve uma bem sucedida carreira, com dois filhos crescidos e no auge dos 40 e alguns anos decide que precisa de auto-conhecimento. Por mais algumas razões desconhecidas para ela a princípio, decide procurar um analista - daí o título do filme (antes também do livro e da peça). Mercedes resolve se (re)inventar (lembram que eu disse no início do texto que não era por coincidência que eu havia ido assistir ao filme?), embora tenha “certeza” de que esteja tudo bem com sua vida, afinal, pensava ela, ela tinha o que a grande maioria “normal” das pessoas - que, não raro se acomodam e fingem ser felizes - tem ou desejam: nenhuma grande tragédia na vida, uma situação vivencial aparentemente estável em alguns aspectos, um bom marido que era também um bom pai e um bom homem, sexo mais ou menos bom, mais ou menos muito de vez em quando (em alguns casos, na vida real, sexo pode até não existir), filhos com saúde, "bem criados" e aparentemente sem problemas, realização profissional, uma boa casa, grana... O que mais uma pessoa poderia querer? O que estaria errado? Essas são algumas das questões que o filme traz à tona e é aí que ele se desenrola.

Retomando novamente meu último texto, querer (que no exposto acima está mais ligado à necessidade) é diferente de desejo, dentro da perspectiva psicanalítica, como já vimos. No caso do filme, "desejo" talvez possa ser traduzido com a ida da personagem por conta própria ao analista, tendo coragem de olhar com honestidade para si mesma e para sua vida que não a fazia feliz e pelas mudanças que, a partir disso, ela assumiu - com muita dignidade - fazer. O "desejo" é de ordem puramente psíquica e subjetiva e aqui lembro-me do Contardo num texto em que já o citei “Você quer mesmo ser feliz?” onde ele traz a questão de que “algumas pessoas nem sempre querem aquilo que desejam” (Contardo Calligaris, 2008), mesmo que isso lhes custem o preço mais alto de uma existência: a prisão da alma, a triste e dolorida condição de não se ter coragem suficiente para desbravar as próprias trilhas internas, romper com o que está falido há tempos e buscar a si mesmo e a felicidade, seja ela o que for, quem for, como for e onde estiver. O que a corajosa Mercedes faz é ir ao e de encontro a si mesma, (re)descobrindo-se, (re)inventando-se, libertando-se, criando possibilidades mais honestas - e por isso mais verdadeiras e belas - de sentir-se de verdade, de ser feliz de verdade, de viver de verdade. A verdadeira estória dela, se fosse real (se bem que podemos reconhecer várias pessoas que conhecemos na pele da personagem) começaria, na realidade, penso eu, quando o filme termina, pois, repetidamente citando Fernando Pessoa (2005): “A felicidade surge de um desassossego da alma.”  A atitude do sossego e do repouso - principalmente sobre si mesmo, sobre o outro e sobre uma vida que se imagina confortável - pode até ter, em certa medida, suposta e ilusoriamente alguns ingrediente do que se quer - a todo custo - chamar felicidade, mas é tão somente máscara para esconder o feio e deformado, além de ser também repugnantemente covarde e triste, muito triste . E o pior, com o passar do tempo - e se se exceder só um pouquinho além da medida (onde a maioria finge não perceber e não ver), acaba por criar irreversíveis escaras... grandes, feias, sujas e fétidas escaras.

“(...)Eu prefiro na chuva caminhar
que, em dias tristes, em casa me esconder.
Prefiro ser feliz, embora louco,
que me conformidade viver.”
(Martin Luther King, 1963)


Ser feliz de verdade implica arriscar, mudar, transformar, se (re)criar, se (re)inventar, alterar a ordem, trilhar matas virgens da alma e novos caminhos. Implica novas posturas, novas formas de ser e estar no mundo. Implica coragem e ousadia. Se não temos isso, temos muito pouco ou nada. E, para nos (re)inventarmos, nos (re)criarmos e promovermos uma verdadeira transformação, na direção de mais respeito, comprometimento e cuidado com a própria vida, não podemos fechar nossos olhos nem tapar nossos ouvidos. Não podemos nos esconder atrás do conveniente e confortável, não podemos barganhar a própria vida, não podemos vender nossa dignidade, não podemos nos repousar sobre nós mesmos e o que é pior, sobre um outro ou sobre uma situação. Não podemos deixar que as escaras fétidas tomem conta de sua alma. Ao contrário, faz-se necessário termos coragem, ousadia e hombridade para nos embriagarmos de vida, de movimento, de desassossego, de transformação, de alegria, de louca felicidade íntima. Daí temos que ser feliz - segundo o parâmentro de felicidade de cada um - depende unicamente de nós, pois a felicidade - ou a alegria, como queiram - como é intrínseca, é uma escolha. Ela não é um destino, ela é o caminho. E escolha implica comprometimento e responsabilidade. Comprometimento e responsabilidade conosco, com os quais nos relacionamos e com a vida que nos cerca, com tudo o que ela evoca. Mas, se ainda assim precisarmos ser encorajados de alguma maneira com o tumulto que isso pode provocar em nossas veias e artérias fiquemos com a letra de “Balada do Louco” que Rita Lee, anos atrás musicou com Arnaldo Batista, para reflexão: “Dizem que sou muito louco por pensar assim/ Se eu sou muito louco por eu ser feliz/ Mas louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz(...)/ Se eles são bonitos, sou Alain Delon/ se eles são famosos/ sou Napoleão(...)/ Se eles têm três carros/ eu posso voar(...)” e assim encerra: “Sim sou muito louco, não vou me curar/ já não sou o único que encontrou a paz/ Mas louco é quem me diz e não é feliz/ Eu sou feliz.” (Os Mutantes, 1972)