terça-feira, 25 de janeiro de 2011

(RE)COMEÇAR

“Viver é afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro. A toda hora, a todo momento, de dentro pra fora, de fora pra dentro.”(Walter Franco) - Imagem: Getty Images





RESISTÊNCIAS, MEDOS, MUDANÇAS... (RE)COMEÇO!!!



Por Veruska Queiroz



Há uns dias, à padaria, não pude deixar de ouvir duas pessoas conversando sobre uma tal prova de resistência de um famoso – e controverso – programa de uma emissora de televisão. A conversa girava em termos de considerações pessoais nas quais a discussão – bastante acalorada, por sinal – enfatizava o fato de que ter resistência - física e psicológica no caso - era mesmo algo muito difícil e muitos não estavam mesmo preparados para tal, enquanto outros pareciam vencer a resistência sem grandes problemas. Num outro ponto da conversa, discutiam sobre o fato de a resistência – naquele contexto específico - gerar medo: medo de, a partir daquele ponto, se estar mais visado, medo da responsabilidade e do peso que os atos poderiam ter a partir daquele instante.

Saí da padaria pensando no que ouvira e, embora meus pensamentos não estivessem mais no contexto da conversa daquelas duas pessoas sobre o tal programa de televisão tentei, apenas como exercício de raciocínio atrelar tais conceitos: resistência e medo, obviamente sob outros pontos contextuais. Com minhas sempre tão presentes divagações, outro conceito me veio à cabeça: mudanças – embora não soubesse, naquele momento, exatamente o porque. Até chegar à casa, fiquei tentando articular ou tentando um ponto de articulação – se pudesse mesmo haver algum – entre resistências, medos e mudanças, essa que acrescentei  e estava revirando meus pensamentos. Talvez a tenha acrescentado, possivelmente, entre outros motivos, por uma situação que sempre considerei marcante - o início de um novo ano - (re)começo - e as possibilidades de renovação que, para mim, sempre o acompanham. De acordo com os parâmentos e crenças de cada pessoa, um novo ano pode ser a chance de uma rotamada de sonhos, planos ou o (re)começo de algo ou mesmo um início novinho em folha de novas diretrizes de vida, seja em perspectiva interna ou externa. Fato é que, motivada por voltar a escrever logo no início do ano, a palavra mudança e sua significação ganharam corpo junto aos outros dois conceitos que fizeram meu caminho da padaria até à casa um verdadeiro cenário de profusão de idéias. 

Distando agora totalmente da conversa à padaria, se tomássemos como norteamento o senso comum ou apenas formas de pensar generalizadas, não ficaria difícil entendermos que sim, todos nós podemos apresentar vida afora, inúmeras resistências por medo de muitas situações e coisas e sabemos – ou, pelo menos, temos uma noção - que no momento em que decidirmos (ou conseguirmos) deixar essas resistências de lado – seja por qual motivo for - poderemos ter de enfrentar nossos medos e teremos de ter uma nova postura frente às condições que surgirem. Uma mudança pode ou não surgir daí – para melhor ou para pior - o que pode também acarretar mais medo e podemos voltar ao ponto da resistência anterior. Por exemplo: uma pessoa que tenha uma grande resistência em aprender a dirigir por medo de não saber controlar o carro numa situação de stress ou por medo da violência no trânsito. Essa pessoa pode ou não conseguir vencer essa resistência e seus medos. Se conseguir, ela sairá transformada, de alguma forma, desse processo e uma nova postura deverá ser adotada. Se não, ela poderá continuar presa aos medos e continuar a resistir. Também pode acontecer de decidirmos vencer as nossas resistências – ou parte delas, conseguirmos enfrentar alguns medos, adotarmos novas posturas de vida e nos prepararmos para as mudanças que se apresentarem a partir daí, com novas e outras resistências e novos e outros medos talvez, mas com a possibilidade de tranformações e porque não e também, (re)começos.

Enfim, uma série de situações cotidianas são possíveis quando pensamos em resistências, medos, mudanças e (re)começos e claro está que essas considerações são apenas generalizações. Dias depois, não pude deixar de continuar pensando se haveria alguma articulação teórica em que pudessem estar atrelados esses conceitos e algumas coisas bem interessantes surgiram.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, etimologicamente o verbo resistir vem do latim resistere e significa “Opor força ou resistência a; não ceder, não se dobrar; opor força à força; defender-se; conservar-se firme e inabalável, não sucumbir; não aceder, negar-se, recusar-se; conservar-se, durar, subsistir.” Faces a essas significações, uma articulação entre elas e o conceito de resistência dentro da perspectiva psicanalítica tornou-se quase imediato. Conceitualmente, resistência para a psicanálise refere-se a tudo “o que  nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente.”(Laplanche e Pontalis, 1992) ou o “termo empregado para designar o conjunto das reações de um analisando cujas manifestações, no contexto do tratamento, criam obstáculos ao desenrolar da análise.”(Elisabeth Roudinesco, 1998)

A resistência em psicanálise é parte de todo o processo de análise de uma pessoa. Ela é exatamente o que o seu conceito propõe, ou seja, uma força que resiste, uma oposição à produção do novo, uma tendência para a conservação do mesmo e uma evitação de qualquer tipo de mudança. Isso porque todo processo analítico e a psicanálise em si giram em torno da transformação sujetiva e de alguma forma de mudança e a resistência aparece como defesa - em relação ao recalque - que a pessoa usa para se proteger e afastar-se de qualquer perigo, ansiedade ou desprazer sentido por ela, até que possa, pouco a pouco ser trabalhada e superada. Para lidar com a resistência e com a compulsão à repetição há o manejo da transferência - que precisa ser bem trabalhada e conduzida, mas essa é uma outra inserção teórica de que não falarei aqui, embora a mesma seja de indiscutível e fundamental importância. Em suma, a prática analítica implica construção de novas formas de subjetividade e novas formas de lidar com os conflitos inerentes a todos e à vida e a resistência pressiona contra esse novo, até que seja capaz de ser melhor compreendida e, talvez até superada - se for o caso - depois de devidamente trabalhada e elaborada.

Dito isso, torna-se fácil compreender porque a resistência – seja na perspectiva psicanalítica ou na vida cotidiana - é tão forte: ir em direção ao novo, à novas formas de ser e estar no mundo não é tarefa das mais fáceis, estando uma pessoa em processo de análise ou não. O novo, o desconhecido, aquilo que não sabemos – e, por vezes, nem queremos saber, mesmo sabendo – provoca angústia, medo, sofrimento e, não raro dor. Mudar (de verdade) provoca desconforto porque mudar é, entre tantas coisas, mexer e remexer, alterar a ordem, sair da zona de conforto, dar a cara a tapa, desnudar-se, desvendar-se - com a possibilidade de desvendar o outro e o mundo também, desaprender para aprender de novo, ir ao encontro de – na maioria das vezes, ir de encontro a – dúvidas, incertezas, peguntas sem respostas, inesperados, dores passadas e presentes, angústias de ser, estar e existir, lugares escuros dentro e fora de nós e, não obstante, ir de encontro também a muitas dessas mesmas questões em relação aos que convivemos e mantemos algum tipo de vínculo relacional. Mudar provoca desconforto porque o processo de mudança vai nos "obrigando" a olhar necessariamente para dentro. E olhar para dentro não é tarefa para qualquer um, não. Não mesmo. Quando começamos a olhar para dentro, começamos a perceber que todas as nossas atitudes ou a falta delas terão sempre consequências e começamos a entender que nada nos ajudará - muito pelo contrário - se continuarmos no processo de esquivas, desculpas, justificativas, mentiras e omissões para transferir o peso dessas nossas atitudes e as consequências delas para os ombros de outras pessoas ou para a roda da vida. Mudar implicar maturidade, maior responsabilidade com a gente mesmo, com a vida que vivemos e com quem vive essa vida conosco. Sobretudo, mudar implica sermos capazes  - seja de que forma for - de enfrentar e superar todo esse desconforto, toda a inquietude que a angústia do medo provoca - seja medo do novo, medo da aceitação ou da rejeição, medo do vir-a-ser, medo do não vir-a-ser, medo do salto, medo do susto, medo do “outro lado” e até mesmo medo da própria mudança.

Mudar é inerente à vida. De acordo com a ciência, biologicamente falando, toda célula do corpo humano se regenera em média a cada sete anos. Portanto, somos literalmente novas pessoas a cada sete anos. Mudamos também de idade, de lugares, de pensamentos, de sentimentos, de conceitos, de paradigmas, de representações e de visões de mundo durante toda a nossa vida. Mudamos - para melhor ou para pior. A mudança em nós, nos outros, em tudo o que nos cerca e na vida é fato. Acontece que as mudanças subjetivas são mais difíceis, porque elas estão atreladas a muitas representações também subjetivas desde a nossa infância e conseguirmos derrubar as resistências - ou parte delas - que nos levariam a novas formas de ser, a novas subjetivações e a alguma forma de mudança e transformação requer que estejamos conscientes do enfrentamento dos nossos medos, dores e angústias. Esse enfrentamento, que é o próprio começo da mudança pode gerar conflitos, crises, dúvidas e, muitas vezes, vontade de permanecer no mesmo lugar – o que pode parecer paradoxal e seria um retrocesso à resistência, em certa medida. Temos que a resistência pode ser, ao mesmo tempo fator de mudança e de permanência a um mesmo estado. Mas, se conseguirmos ir além, quebrar a resistência – ou que seja, pelo menos, parte dela – enfrentar as angústias, as crises, o medo do salto e do novo, os sofrimentos e, não raro o caos que podem surgir dessa inicial desestabilização das coisas; o que pode surgir do outro lado, se estivermos mesmos dispostos a "pular o muro" é uma grandiosa e, não rara, feliz mudança, de acordo com as vivências de cada um. Com novas possibilidades, novos direcionamentos, novas visões, novos encantamentos e novas oportunidades. Lembro-me aqui de Nietzsche: "Eu vos digo: é preciso, às vezes, ter um pouco de caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante."      

E mudanças podem ser extremamente positivas quando elas estão na direção de descobrirmos e colocarmos para dançar novas formas de ser e estar no mundo. Mudanças são o oposto do estagnado, da poeira que juntamos e varremos para debaixo do tapete, do retrato bonito que enfeita nossa sala de estar. Mudanças são o avesso do vazio, de uma vida, muitas vezes infértil, se pensarmos nas muitas aberturas que elas trazem e no seu oposto. Mudança é coragem, novas perspectivas, novas expectativas, novos nós mesmos. Mudança não é o que contamos, mas o que vivemos, dia após dia, com alma, com atitude. Mudanças podem ser reinvenções de nós mesmos e de nossas vidas, recriações de novas posturas, novas visões da vida e novos pensamentos e sentimentos, novos rearranjos da música da vida. Mudança é vida. Novos modos de sentir, ver, agir e pensar o mundo. Enfim, mudanças podem ser belos e deliciosos começos ou - como queiram - (re)começos. Instigantes, desassossegados e desafiadores talvez, mas também - e quase sempre - fascinantes (re)começos.

“A invenção e a criação seriam então as resultantes maiores desse processo sempre recomeçado, na medida em que pressupõem, como sua condição concreta de possibilidade, a existência de uma subjetividade que possa ser permanentemente inventada e recriada contra um fundo homogeneizado de fixações estabelecidas” (Joel Birman, 2006)